Karl Popper, Estoicismo e Buda: o que nos ensinam sobre o inimigo que vive dentro de nós.

Hoje estava ouvindo um podcast falando sobre a ansiedade, que me trouxe algumas reflexões.

A ansiedade, o estresse, é uma resposta natural do nosso cérebro, que ao identificar uma situação de perigo, dispara nosso sistema conhecido como “luta ou fuga”, nos deixando preparados.

Este sistema fez o ser humano sobreviver a predadores em épocas mais primitivas.

Hoje os perigos são mais sutis, mas o cérebro é o mesmo.

Os perigos de hoje são o prazo final do projeto, o risco de perder o emprego, a reunião importante de final do semestre, o encontro com uma nova namorada, aquela apresentação em público, a possibilidade de quebrar financeiramente, entre outros.

O cérebro responde da mesma maneira, dispara um sistema em nosso corpo que nos prepara para lutar ou fugir. Mas não há predador contra o qual lutar fisicamente nestes casos, nem mesmo há para onde fugir.

Os problemas continuam no mesmo lugar, e seguem ameaçadores. Então a ansiedade e o estresse também não vão embora.

Hoje a nossa luta se dá em outro campo. Se nos primórdios o ser humano se valeu de armas para conseguir matar aqueles animais que o atacavam, em uma luta física, que transcorria em selvas, planícies, cavernas, hoje é diferente.

A luta nos dias de hoje se dá dentro da nossa mente. Mas qual é o inimigo? Qual a arma? Como vencer?

Normalmente não temos as respostas para estas perguntas, porque na verdade sequer conhecemos as perguntas, e portanto, seguimos com problemas não resolvidos, as “feras” seguem vivas, nos perseguindo indefinidamente, não nos matam, mas também não nos deixa viver em paz, vivemos em um estado de alerta constante, esperando o ataque iminente, que nunca vem, o que é ainda pior.

Não identificamos o inimigo, pois ele usa o melhor disfarce possível, ele se faz passar por “nós mesmos”. Exatamente isso. Sabe aquela voz dentro de você, que te diz coisas como “você não é bom o suficiente”, “você não vai conseguir pagar todas estas contas”, “você não está pronto para entregar o projeto até o prazo final”, “seu chefe não gosta do seu trabalho, você será demitido a qualquer momento”.

Você já deve ter ouvido esta voz, ela diz coisas que te colocam sob ameaça, esta voz é a “fera” de outros tempos, ela é o seu inimigo. Mas você pensa que se a voz está dentro da sua cabeça, é você mesmo, e daí você se rotula, você diz para si mesmo que tem uma forte auto-crítica, que você é realista, que você percebe quando as pessoas não gostam de você, e você segue achando diversas características, que formam uma personalidade que justifica aquelas vozes.

Mas esta personalidade que você acredita ter, que justifica as vozes que te colocam em estado de ameaça, são mais uma ardilosa armadilha do inimigo, fazendo você acreditar que não tem inimigo nenhum, você pensa daquela maneira, e que portanto, infelizmente, não há o que fazer.

Mas o fato de você não ver o inimigo não livra você do sofrimento, você continua com medo de quebrar, de não pagar as contas, de ser demitido, de não se sair bem na palestra.

Você vai acumulando tudo isso, que só vai crescendo, como uma “bola de neve”, está tudo sendo armazenado dentro de você. Você acumula diversos problemas não resolvidos, decisões não tomadas, pois você fica paralisado pelo medo.

E como você resolve? O sistema luta ou fuga está disparado constantemente. Você não vê o inimigo, então você foge. Mas para onde? Como a ameaça não é física, você não corre, você foge da forma que é possível, tentando evitar encarar o problema, a dificuldade, o medo, então você recorre a todas distrações possíveis, pois você não consegue fazer algo simples como ficar sozinho sem fazer nada, pois daí a voz dentro de você surge com força.

Percebeu? Você tem medo de ficar sozinho com você mesmo, pois daí a voz vem. Você precisa fugir dela, e para isso, você foge de você mesmo. E a fuga pode se dar de diversas formas, assistir tv, ouvir música, ou outras menos indicadas como álcool, drogas eventualmente. O objetivo é fugir da voz, confundir a voz, seus sentidos, ficar alheio aos seus pensamentos.

Mas o problema é que o problema continua lá, instalado no seu subconsciente, só esperando você estar sóbrio, terminar o filme, desligar a música, para então pular dentro da sua mente de novo na forma de pensamentos automáticos, descontrolados.

Mas tem mais uma dificuldade que você enfrenta, porque os problemas, mesmo quando você consegue uma distração, ficam “rodando sem segundo plano”, como se fosse um computador, aquele programa que está aberto, mas que não está na tela, mas ainda assim está rodando em segundo plano, como sua caixa de emails, por exemplo.

E quando os problemas ficam “rodando em segundo plano” você não consegue relaxar, até se ocupa com lazer passivo, mas continua preocupado, você está vendo o filme, ouvindo a música, conversando com amigos, mas ainda assim sente o desconforto, a voz sussurrando dentro da sua mente.

Quando refletia sobre este assunto hoje, me deparei com a seguinte postagem nas redes sociais: “The heaviest things in life aren’t iron and gold, but unmade decisions. The reason that you are stressed is that you have decisions to make and you’re nos making them.” Tradução livre: “As coisas mais pesadas na vida não são ferro e ouro, mas decisões não tomadas. O motivo pelo qual você está estressado é que tem decisões a tomar e não está tomando.”

Decisões não tomadas, problemas que você está evitando, medos dos quais se esconde, tudo aquilo que a voz interior te diz, que te faz sofrer. Estas são as coisas mais pesadas na vida. E elas continuam pesando e gerando estresse e ansiedade exatamente por não estarem sendo encaradas e resolvidas.

Vou abrir um parêntese neste ponto do texto para falar do filósofo da ciência Karl Popper, que afirmou: “Para que uma teoria seja considerada científica, ela deve ser passível de refutação.”

A frase é baseada no conceito de falseabilidade (ou falsificabilidade), proposto por Karl Popper. A ideia da frase transcrita está no coração do conceito de falseabilidade. Para Popper, o que distingue uma teoria científica de uma não científica é a sua capacidade de ser testada e potencialmente refutada por novas evidências. Uma teoria que pode ser falsificada (isto é, demonstrada falsa por observações ou experimentos) é considerada mais valiosa, pois oferece a possibilidade de progresso científico. Se uma teoria é imune à refutação, ela deixa de pertencer ao campo da ciência e se aproxima de dogmas ou crenças que não podem ser contestadas.

Popper desenvolveu essa teoria como uma crítica ao positivismo lógico, que acreditava que a ciência avançava acumulando confirmações de hipóteses. Para Popper, a ciência progride quando testamos uma teoria buscando refutá-la, em vez de confirmá-la. A capacidade de falsificar uma teoria é o que a torna científica, porque isso permite que ela seja testada contra a realidade. Por exemplo, a teoria da gravidade de Newton foi científica porque poderia ser testada e, eventualmente, revisada ou substituída quando novas evidências (como as descobertas de Einstein) a desafiaram.

Neste ponto você pode estar achando que eu me perdi, qual seria a relação de Popper e seu conceito de falseabilidade com nossa voz interior e pensamentos automáticos.

Calma, segue caminhando comigo, vamos conectar os pontos.

Assim como as teorias científicas devem ser testadas e refutadas (conforme a ideia de Popper), nossos pensamentos automáticos também precisam ser submetidos à crítica racional. Se não desafiarmos esses pensamentos subconscientes e aceitarmos suas suposições automaticamente, corremos o risco de sermos “dogmáticos” com nossas próprias crenças e reações emocionais, e as aceitar como verdadeiras, simplesmente porque estão em nossa mente.

Em ambos os casos, o progresso — seja científico ou pessoal — acontece quando permitimos que as suposições iniciais (teorias ou pensamentos) sejam verificadas e possivelmente rejeitadas. Portanto, a racionalidade e a consciência agem como mecanismos de “falseabilidade” para garantir que nossos pensamentos e percepções se alinhem melhor com a realidade, evitando distorções cognitivas ou falsas certezas.

Assim como a ciência tem de estar ao alcance de testes da realidade, e ser eventualmente refutada como falsa, o mesmo ocorre com nossa voz interior e pensamentos automáticos, eles devem estar sujeitos ao teste da realidade, através de nossa racionalidade, podendo se mostrar falsos.

Para isso, não podemos fugir da voz interior e dos pensamentos automáticos, como nosso sistema de luta ou fuga nos incentiva a fazer, temos que ficar em pé, esperar o inimigo de frente e lutar.

O inimigo é a voz interior, ela não é você, é somente um produto do seu subconsciente, é uma resposta emocional a experiências que você viveu durante toda a sua vida. Quando a voz diz que você não é bom o suficiente, talvez seja resultado de alguma matéria que você não ía bem no colégio, quando a voz diz que você vai ser demitido, talvez tenha vivido alguma história com seu pai sendo demitido, o que pode ter acarretado dificuldades financeiras, que também retorna agora com a voz dizendo que você vai quebrar e não vai conseguir pagar as contas.

A voz não é você, ela é um produto do seu subconsciente, de traumas e memórias, e ela gera aqueles pensamentos automático negativos.

A voz é o inimigo. Você não deve se esconder. Se esconder é impossível, é como quando você afirma para si mesmo “não quero pensar em um elefante”, pronto, já pensou no elefante. Não tem fuga.

E como enfrentar? Isso pode ser um aspecto mais complexo, e não tenho a pretensão de tratar disso aqui, mas podemos falar de uma das formas, porque enfrentar a voz diretamente também pode ser difícil, ela te conhece, detém sua inteligência, e o campo de batalha dela é a constante criação de argumentos que parecem racionais. Ela atua neste campo do embate, do confronto, do medo, da ameaça.

Então podemos tirar ela do campo de batalha dela, não “batendo de frente”.

Qual a alternativa?

O que a voz nos apresenta é uma história, ela nos apresenta um evento sob um viés, sob um ponto de vista, que faz com que pareça um problema, que seja aterrorizador, nos cause medo. O que precisamos é agir com acolhimento, gratidão, amor, temos de abraçar o problema, reconhecer ele, e ressignificá-lo, o que podemos fazer recontando a história de uma forma que seja positiva. Exemplo. Quando a voz te diz que você vai ser demitido e vai quebrar, e te conta a história que você já viu isto acontecer com seu pai, que é como as coisas acontecem, você pode recontar esta história, de como ela foi um grande desafio, mas que trouxe aprendizados, te fez crescer, ser mais responsável com o dinheiro, fez você dar maior valor as coisas, por entender que o futuro é incerto, e pode nos revelar surpresas. Vejam que os eventos continuam os mesmos, mas a história foi recontada, você trocou uma história de frustração e medo por uma história de aprendizado e responsabilidade.

Esta reflexão nos coloca diante de princípios da filosofia estoica. Trago uma frase de Epicteto: “Não são os eventos que perturbam as pessoas, mas os julgamentos que elas fazem sobre eles.”

Percebe a conexão com a nossa reflexão? Não controlamos os eventos, e na realidade, não são eles que nos causam problemas, a real dificuldade, o estresse que sofremos é quando aceitamos o julgamento da voz interior, dos pensamentos automáticos. mas temos de ouvir Epicteto e também Popper, temos de desafiar estes julgamentos, fazer testes de realidade e racionalidade, e veremos que podemos refutar os pensamentos automáticos, através da ressignificação das histórias que nos contam.

Outro estoico, Marco Aurélio, em suas meditações, nos ajuda ao dizer que: “Tudo o que ouvimos é uma opinião, não um fato. Tudo o que vemos é uma perspectiva, não a verdade.” Isso se alinha com a “falseabilidade” de Popper, nos lembrando que as histórias que contamos sobre nossas dificuldades são subjetivas, e podemos escolher reescrevê-las de forma mais construtiva, assim como a ciência pode ser refutada através de testes da realidade.

A voz não é você.

Os pensamentos automáticos não são você.

Eles são o inimigo.

O que eles te dizem não absoluto.

Você pode refutar estes pensamentos, provar que são falsos.

Você faz isso com gratidão, amor e acolhimento.

Reconte a história de uma forma que te faça bem.

A história é sua.

Buda: “A dor é inevitável, o sofrimento é opcional”.

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